O DUELO
Durante toda série, até
o momento, vemos uma queda de braço entre duas forças: o masculino e o
feminino. Mas essa queda de braço não se restringe a uma questão de gênero
apenas, mas a estes elementos apresentados como arquétipos de poder. Um poder
fálico branco estabelecido, que dita as regras pela força, pelo capital, pelas
leis, pelo olhar vertical, hierárquico; e um poder feminino negro excluído, que
se impõe pela sua herança ancestral, pela sua religiosidade, cultura, pelo
olhar plural e agregador. Esses dois poderes que abarcam em sua constituição
elementos de gêneros opostos como no caso do masculino branco que inclui a patroa
Silvia (episódio I) e a patroa amiga da patroa da Vera (episódio II) e do feminino negro que inclui os homens
da casa de Mãe Bia (Aloísyo, Moacir, Lorival e Lila), esses poderes se
apresentam em suas diferentes facetas de opressão e resistência durante toda a
série. Mas aqui neste episódio entra um outro elemento: o masculino negro.
Vejo uma diferença
entre esses dois arquétipos, o masculino branco e o negro. O branco se
manifesta pela força de quem detém o poder e por isso determina o que é falso
ou verdadeiro; como as coisas devem ser e que lugar devem ocupar. O negro é
oriundo da mesma energia racional e imperativa, porém é a face oprimida deste
poder por ser negro e visto como desprivilegiado. Assim como acontece com o
feminismo branco ocidental que não abarca as questões do feminismo negro e suas
particularidades oriundas de conceitos históricos muito bem arraigados.
Quando o episódio abre
com Cleiton duelando numa referência quase velho oeste com Bacana e sua moto,
ele não esta duelando só com um rival masculino que tenta tomar de assalto sua
amada. Ele esta duelando com tudo o que este personagem, o Bacana, representa
como figura dominante (seja
pela beleza apolínea, seja pelo poder social, pelo poder financeiro, pela
certeza de que pode tudo pela impunidade que lhe protege, enfim). E ao
derrubá-lo, ao vencê-lo ele rompe com as amarras, arrebentando seus grilhões contemporâneos
com uma porrada certeira de sua arma
de ferro “rudimentar” contra o exemplar bem acabado e muito mais poderoso de
seu rival (a pistola). O bem e o mal, aqui inclusive com sua estética ocidentalizada
invertida, se confrontando para além das fronteiras do território limite, o
posto. Neste duelo o masculino negro sai como vitorioso.
No entanto, diferente dos homens nascidos e criados dentro da
força desse matriarcado representado pela família de Madureira que não se
perdeu para as determinações do mundo branco, este exemplar do masculino negro
foi forjado em um lar destruído pelas mazelas sociais de um mundo que sabe
colocar “cada um no seu lugar”. Ele não tem essa referência de força, de raiz,
de saber de onde vem para ter certeza de pra onde vai. Ele não tem a auto
estima alimentada pela força de sua história. Seu passado é carregado de
referências negativas que encontram eco num coração vazio de memória. Este
menino/homem precisa amadurecer, porém seu amadurecimento é na direção deste
exemplo de homem ocidental dominante. Que quando vitorioso tem o mundo a seus
pés e a seu dispor. Ele é forjado sob as regras de um mundo que diz que o
príncipe herói, por exemplo, passa a ter a princesa mulher como sua eterna
serva fiel cheia de gratidão e subserviência por ter-lhe salvo a vida e lhe
dado a graça do seu amor.
Mas essa nossa heroína, princesa/mulher é uma
princesa nada boba que permitiu que seu príncipe a salvasse porque
precisava desta força aliada para se libertar, mas ela se vê e se coloca em pé
de igualdade o tempo todo, negociando o seu ceder até o limite da sua autonomia
sem nunca ultrapassá-lo. A certeza do seu poder e força, que pela mulher branca
ocidental é tão exaltado e a duras penas conquistado pelo movimento feminista
branco, já é intrínseco na mulher negra (brasileira), guardadas as exceções é
claro, que samba, sangra e transforma levando a
vida por um fio, lutando por liberdade nas mais variadas classes sociais
deste país. Umas agem com esta autonomia por clara consciência e outras por puro
instinto. Mas esta força autônoma está ali. E sabemos disso. Nossas princesas
são guerreiras não frágeis mocinhas delicadas, apesar dessa imagem da mocinha frágil
do mundo ocidental também estar sendo quebrada aos poucos. Porém, a visão de
Cleiton é forjada pela supremacia do masculino branco que tudo pode. Quando ele
chega à casa feliz contando pra mãe seu feito heróico, não vemos apenas a
alegria de um menino que se enxerga homem pela primeira vez, mas a força do
masculino se fazendo presente como dominador. “Eu salvei ela!!” . Brada nosso torto herói por conta de sua construção.
Este herói que sempre foi oprimido e agora, por ter rompido com suas amarras,
quer se tornar opressor ao invés de querer acabar com a opressão. E como tal
herói quer tudo o que o guerreiro vitorioso tem o “direito” de ter, inclusive o
corpo do objeto de seu desejo. Nesse momento esses dois poderes (negro e
branco) oriundos desta mesma energia masculina se igualam e no caso do Cleiton
se torna ainda mais opressor porque carrega em si o desejo da forra. Seu querer é carregado da
intensidade daquele que nunca comeu mel e quando come se lambuza. Por isso que
no momento em que se vê encurralada Conceição enxerga em Cleiton o mesmo algoz
que identificou em Cássio. E o trata da mesma maneira. Por isso também que sua
decepção com seu amor é maior “Nunca pensei que eu ia ter que fugir de ocê
tamém!”. E Cleiton pára diante do universo matriarcal e equilibrado da casa de
Mãe Bia. O pacto foi rompido. Ele tentou dominar a força subjetiva que a tudo
abarca e acolhe e se sobrepor a esta. Só que neste lar o que reina é o amor que
a tudo equilibra. E para o masculino conseguir se impor neste lugar é preciso
ter a coragem dos humildes. Porque a vida precisa dos dois lados (juntos em pé
de igualdade) para poder seguir.
“O correr da vida, fia,
embrulha tudo. A vida é assim! Esquenta, esfria, aperta, e daí afrouxa, sossega
e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem!”
referente a "Grande Sertão Veredas" de Guimarães Rosa